Resumo
Hoje vamos falar de um gás que é verde de verdade: o biogás. Ele nasce da decomposição de resíduos orgânicos, é concentrado em metano e vira energia. Ao invés de deixar o metano ir direto para a atmosfera, aproveitamos esse gás para gerar eletricidade, calor ou até transformar em biometano, com qualidade equivalente ao gás natural. O metano é 28 a 34x mais nocivo para a atmosfera que o gás carbônico gerado na sua queima. Resultado? Menos emissão de gases de efeito estufa e mais eficiência no uso dos nossos resíduos.
O biogás pode vir de várias fontes: dejetos animais, resíduos agrícolas, esgoto, resíduos urbanos... tudo o que normalmente descartaríamos. E há várias formas de usá-lo: geração de energia em fazendas e aterros, substituição do diesel em caminhões ou injeção na rede de gás natural. Dado o extenso território brasileiro, a forte agropecuária e o modelo de tratamento de resíduos baseado em aterros sanitários, somos um dos países com maior potencial para o desenvolvimento do biogás no mundo. Vamos focar hoje no seu uso para geração de energia elétrica e, em um próximo artigo, abordar seu uso para produção de biometano e, então, comparar os dois usos finais, além de explorar novas alternativas em desenvolvimento.
O Brasil já investe em biogás para geração de energia com aplicação comercial desde os anos 2000, mas os projetos foram viabilizados graças à aplicação de mecanismos internacionais, incentivos tarifários e linhas de financiamento. Como essa fonte se desdobrará na geração de energia nos próximos anos em um cenário com menos incentivos e com energias renováveis muito mais baratas que o biogás? É isso que vamos discutir hoje.
Desenvolvimento da indústria de biogás
O uso do biogás no Brasil começou lá atrás, nas décadas de 70 e 80, com projetos bem pontuais em propriedades rurais, principalmente como forma de tratar resíduos animais e gerar um pouco de energia ou calor localmente. Mas a coisa não deslanchou por muito tempo, seja pela falta de tecnologia acessível, pouca regulação ou até pelo baixo preço da energia convencional. Foi só nos anos 2000 que o tema voltou a ganhar força, com o avanço dos biodigestores, surgimento de políticas ambientais mais estruturadas e um novo olhar para o aproveitamento energético de resíduos.
Nos últimos 5 anos a geração de biogás cresceu em média 21% ao ano, potencializada pelas oportunidades regulatórias e progresso da tecnologia. A criação do RenovaBio, o marco legal do gás (Lei nº 14.134/2021) e os incentivos fiscais e financeiros (como CBIOs e linhas do BNDES) colocaram o biogás e o biometano no radar de investidores e grandes empresas. O setor deixou de ser experimental e passou a ser estratégico com muitos estudos para maior segurança do setor elétrico pela sua característica de despachabilidade e capacidade de armazenamento.
Fontes de geração de biogás
O biogás nasce de um processo anaeróbico em que a decomposição de matéria orgânica ocorre em ambientes sem oxigênio. Esse processo acontece naturalmente em lugares como pântanos e aterros sanitários, mas com os biodigestores, conseguimos controlar tudo: armazenar os resíduos, acelerar a decomposição e capturar o gás gerado. Isso abriu espaço para projetos mais eficientes, conectando diretamente o gás à geração de energia, aquecimento ou produção de biometano.
Praticamente todo resíduo orgânico pode virar biogás: restos de comida, fezes de animais, esgoto, resíduos agrícolas e até lixo urbano. Mas na prática, o que mais se destacou até agora no Brasil foram três fontes principais:
Dejetos da suinocultura e bovinocultura, muito presentes no Sul e Centro-Oeste;
Resíduos da cana-de-açúcar, como vinhaça e torta de filtro, comuns no Sudeste;
Aterros sanitários bem estruturados, principalmente em grandes centros urbanos.
Essas fontes se destacam porque têm volume constante, custo de logística viável e, no caso do agro, trazem retorno também na gestão ambiental da propriedade. Já os lixões, que não têm controle técnico sobre os resíduos, acabam fora do jogo por não garantirem produção consistente de gás.
A imagem abaixo representa dados de 2023 das origens do biogás e seu uso final em valores percentuais:
CIBIOGÁS. Panorama do Biogás no Brasil em 2023
Geração de energia elétrica
Uma das aplicações mais diretas do biogás é a geração de energia elétrica e térmica. É possível usar o gás diretamente em motogeradores, turbinas e caldeiras, transformando um passivo ambiental em energia útil para consumo local ou injeção na rede. Esse modelo é especialmente interessante em aterros sanitários e agroindústrias onde há geração constante de resíduos e demanda energética no mesmo local.
Ao longo das últimas duas décadas, os projetos de biogás no Brasil evoluíram para um cenário de regulação mais claro e abertura de novos modelos de negócio. Nos anos iniciais (2002–2008), o biogás ficou de fora de programas como o PROINFA, o que forçou os primeiros projetos a buscarem apoio via créditos de carbono, contratos bilaterais no mercado livre e o modelo de autoprodução. A viabilidade financeira era uma realidade apenas em nichos, como no caso da UTE Bandeirantes, projeto de 22,2MW inaugurado em 2004 no Aterro Sanitário Bandeirantes, até então o maior de São Paulo. Foram investidos cerca de R$ 48 milhões e foi assinado um contrato bilateral no ACL com o banco Itaú (inovação regulatória na época). A receita de créditos de carbono, os descontos nas tarifas de uso de rede e a isenção de encargos foram os principais incentivos indiretos para viabilização de projetos.
Os créditos de carbono eram autorizados pelo Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) do Protocolo de Quioto, em que a redução de metano era compensada em receita por créditos de carbono para os projetos aprovados. E ela chegava a representar a principal fonte de receita dos projetos, superando o valor de venda da energia.
Entre 2009 e 2015, o setor começou a ganhar fôlego com melhorias regulatórias. Em 2010 foi sancionada a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), determinando o fechamento de lixões e estimulando a destinação adequada de resíduos. Embora a PNRS não obrigue o aproveitamento energético do biogás, o maior rigor ambiental impulsionou aterros sanitários modernos. Nessa época, porém, o mercado de carbono sofreu abalos: a crise financeira global e as indefinições pós-Quioto reduziram drasticamente o valor dos créditos após 2012. Assim, novos projetos tiveram que se sustentar cada vez mais na venda de energia e em incentivos nacionais.
Políticas de financiamento foram fundamentais para viabilizar projetos nesse período. O Grupo Solví contou com financiamento do BNDES via fundo Clima para financiar os projetos em aterro sanitário da UTE Termoverde Salvador de 19,7MW e da Biotérmica Recreio no RS com 8,5MW. Ambos com comercialização de energia no mercado livre. E a UTE Termoverde Caieiras em SP inaugurou em 2016 a maior usina de biogás do Brasil com 29,5MW, viabilizada pelo enquadramento no REIDI (reduzindo custos tributários), financiamento do BNDES e benefício de isenção de ICMS pelo estado de SP.
No setor agroindustrial, os projetos ainda eram incipientes nessa fase. A maior parte dos biodigestores em fazendas servia para queima do biogás ou cogeração local.
A partir de 2015 com a expansão da regulação de Geração Distribuída, permitindo projetos de maior potência instalada e injeção de energia para compensação remota, muitos projetos foram destravados, principalmente no setor agro e em aterros sanitários de pequeno porte.
Um marco histórico para o setor foi a entrada do biogás nos leilões regulados de energia. Em abril de 2016, a UTE Bonfim, da Raízen Geo, foi vencedora de leilão de energia nova com biogás de resíduos da cana-de-açúcar. Com 20,9 MW de potência outorgada e lance vencedor de cerca de R$ 251/MWh, a usina firmou um PPA de 25 anos iniciando geração em 2021. A partir de então, modelos como autoprodução e PPAs de médio prazo também se tornaram frequentes.
Por fim, políticas recentes reforçam o horizonte positivo para o biogás, mas trazem novos desafios para o seu uso para geração de energia. O RenovaBio (Política Nacional de Biocombustíveis) publicado em 2017 incluiu o biogás/biometano como combustível elegível a créditos de descarbonização (CBIOs), melhorando a rentabilidade de projetos que optem por produzir biometano em vez de eletricidade, iniciando um novo ciclo de competição para uso final do biogás.
O biometano como uso final do biogás apresenta o maior potencial de crescimento futuro, especialmente com a crescente demanda por combustíveis renováveis para transporte pesado e industrial. A viabilidade financeira está melhorando com o aumento da escala dos projetos e políticas de incentivo, como o RenovaBio, e novos programas em discussão. Ainda assim, a viabilidade financeira depende fortemente da escala e da proximidade com a infraestrutura de gás natural, com payback variando entre 4 e 7 anos. Falaremos em breve com mais detalhes sobre essa oportunidade.
Uma análise sobre retorno de investimento dos projetos hoje
Agora vamos aos dias de hoje e analisar de forma resumida o retorno de investimento sobre projetos de geração de energia de diferentes tamanhos.
Projetos de pequeno porte (até 250 kW): normalmente são de biodigestores em propriedades rurais. O investimento total aproximado será de R$500 mil a R$1 milhão, com custo por kW de R$5.000 a R$10.000/kW, refletindo a ausência de escala. Os custos operacionais são proporcionais, podendo atingir até 15% do investimento por ano. São viáveis principalmente quando a energia é usada para autoconsumo através da geração distribuída ou com substituição de gerador a diesel. Com isso, a depender da distribuidora o payback simples será entre 4 e 8 anos, com TIR real desalavancada podendo ultrapassar 20% em casos bem estruturados com tarifas elevadas ou ganhos adicionais como produção de biofertilizante. Em modelos menos otimizados, a viabilidade pode ser comprometida.
Projetos de médio porte (250 kW a 2 MW): usinas em aterros regionais ou consórcios de produtores, apresentam investimento entre R$1 milhão e R$5 milhões, com custo por kW em torno de R$4.000 a R$7.000. Com maior eficiência e geração, o custo operacional cai (R$60–120/MWh), e o payback simples varia entre 4 e 10 anos, dependendo principalmente da distribuidora de energia, benefícios de ICMS existente e da possibilidade de receitas adicionais (como tratamento de resíduos). A TIR real desalavancada típica considerando geração distribuída através de contratos de autoconsumo remoto ou geração compartilhada gira entre 12% e 20% ao ano, sendo atrativa quando há contratos mais longos e em distribuidoras onde há menor saturação de alocação de energia na GD.
Projetos de grande porte (acima de 2 MW): como usinas em aterros metropolitanos ou plantas de biogás em usinas de cana, se beneficiam de economia de escala com CAPEX entre R$2.000 e R$4.500/kW e custos operacionais mais baixos (R$40–90/MWh). O investimento pode ultrapassar os R$20 milhões e apresenta maior desafio de comercialização de energia, ultrapassando o limite da GD e enfrentando dificuldade de viabilização com tarifas no ACL. O payback varia entre 5 e 10 anos, e a TIR real desalavancada costuma ficar entre 10% e 16%, podendo ultrapassar 20% quando há incentivos ou monetização de subprodutos como CBIOs. No entanto, sem preços de energia atrativos ou com CAPEX elevado, esses projetos enfrentam maior risco de não alcançar retorno compatível com o capital investido.
Resumindo, projetos de pequeno e médio porte viabilizam na Geração Distribuída por usufruir do abatimento na conta de luz e devem continuar com viabilidade financeira interessante nos próximos anos. Já projetos grandes podem buscar o ACL para negociar PPAs verdes sob medida. Uma estratégia do setor para viabilizar projetos maiores tem sido combinar modalidades, por exemplo, produzir biometano para vender como combustível e usar parte do biogás para gerar eletricidade via GD para consumo local, maximizando o aproveitamento econômico.
Tamanho do mercado e desafio da expansão
O Brasil possui um potencial técnico de produção de biogás estimado em mais de 216 milhões de m³/dia (como referência o consumo total de gás natural hoje no Brasil é de 52 milhões de m³/dia) e hoje exploramos menos de 2% desse potencial. Juntas, as fontes agropecuárias e agroindustriais respondem por cerca de 95% do potencial total, o que posiciona o Brasil como uma potência natural para o biogás.
Apesar do potencial enorme, o setor de biogás no Brasil ainda esbarra em alguns desafios. Do lado técnico, ainda falta cadeia de fornecimento mais robusta e com soluções prontas, o que acaba gerando desafios para a engenharia e riscos na operação. Financeiramente, os investimentos iniciais são altos, o acesso a crédito é difícil e, muitas vezes, o projeto só fecha a conta se conseguir ganhar também com subprodutos, como biofertilizantes ou créditos de carbono. Na parte regulatória, o cenário ainda tem lacunas: burocracia no licenciamento, complexidade para comercialização do biometano e pouco incentivo a biogás em leilões de energia. Além disso, resta a questão da infraestrutura pois muitos projetos estão longe de redes elétricas ou gasodutos, o que complica o escoamento e aumenta os custos. Ou seja, o setor tem muito potencial, mas trava no tamanho do nosso país e complexidade de expansão.
Ainda assim, o biogás oferece oportunidades claras para geração de energia firme, complementando fontes intermitentes como solar e eólica, com destaque para uso em propriedades rurais, usinas agroindustriais e aterros sanitários em grandes centros urbanos. Com o avanço regulatório, os incentivos ao biometano e a tendência de descarbonização, os projetos passam a ter acesso a novos mercados e receitas como CBIOs, biofertilizantes e combustíveis verdes, ampliando a atratividade da cadeia do biogás, mas ao mesmo tempo aumentando a competição para a aplicação de geração de energia, que tem sido tratada em segundo plano nas iniciativas em andamento.
Conclusão
O cenário da geração de energia via biogás no Brasil é de otimismo cauteloso. De um lado, existe um consenso sobre as oportunidades: potencial técnico gigantesco, múltiplos benefícios ambientais e econômicos, tecnologias disponíveis e uma convergência com agendas de sustentabilidade. Por outro lado, os desafios e gargalos que citamos ainda freiam um aproveitamento mais significativo.
Os diferentes modelos de negócio (GD, mercado livre, leilões regulados) oferecem caminhos distintos, que podem ser combinados para dar robustez aos projetos. Na prática, cada região do país encontrará a fórmula mais adequada ao seu contexto, mas acreditamos que projetos de pequeno e médio porte tendem a se beneficiar da evolução técnica do setor e projetos de maior porte das evoluções regulatórias e utilização de outras formas de uso do gás, como biometano.
Em resumo, o biogás no Brasil passou de promessa para realidade com crescimento de 8x na última década, porém ainda engatinha frente ao potencial disponível. A viabilidade financeira é peça-chave. Portanto, os próximos anos exigirão um esforço conjunto de inovação tecnológica, arranjos criativos de financiamento e aprimoramento regulatório (valorizando serviços ambientais), tal como está sendo promovido para produção de biometano, como discutiremos adiante.