LRCAP e o gás natural na gestão de flexibilidade
Panorama do Leilão de Reserva de Capacidade no Brasil e fortalecimento do gás natural na gestão de flexibilidade do setor elétrico
Resumo
Se você acompanha o setor elétrico, já deve ter ouvido falar no Leilão de Reserva de Capacidade, ou simplesmente LRCAP. O foco aqui não é contratar megawatts-hora (MWh) de energia, mas sim megawatts (MW) de potência disponível, aquela “força de resposta” que o sistema precisa para segurar a carga nos momentos mais críticos.
O LRCAP de 2025 prometia ser histórico: muita oferta, expectativa de preços competitivos e a chance de agregar previsibilidade à nossa matriz elétrica. Mas, no setor, a gente sabe bem que nem sempre política, regulação e interesses se alinham no tempo esperado. E o resultado? O certame foi cancelado antes mesmo do primeiro lance.
Hoje vamos conversar sobre como esse leilão surgiu e porque ele é tão importante; o que travou o processo e gerou tanta discussão; o papel do gás natural na flexibilidade do sistema elétrico; e como, lá na frente, gás e baterias devem disputar espaço na entrega dessa flexibilidade.
De onde vem o LRCAP e por que ele é tão necessário
A ideia de ter um leilão focado em capacidade firme ganhou força depois da crise hídrica de 2021. Ficou claro que não bastava ter energia contratada, era preciso garantir potência disponível para segurar o sistema mesmo com a variação de nível dos reservatórios e da geração das renováveis.
Em julho de 2021 foi sancionada a lei 14.182/2021. Ela ficou conhecida por tratar da desestatização da Eletrobras e da prorrogação do Proinfa, da qual já falamos por aqui. Mas o texto também estabeleceu as bases para o formato atual do Leilão de Reserva de Capacidade (LRCAP). Foi prevista a contratação obrigatória de 8 GW de novas usinas termelétricas a gás natural entre 2026 e 2030, localizadas em estados sem infraestrutura de gás (regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste). E essas térmicas deveriam ser contratadas via leilões específicos de capacidade.
Em 2022, um primeiro leilão focado em estados sem infraestrutura teve apenas 3 usinas contratadas, sendo todas no Amazonas. Pela sua característica regional e ainda pelo pouco tempo para desenvolvimento de áreas de produção de gás após a lei de 2021, houve baixa concorrência no leilão.
Para o LRCAP de 2025 com maior planejamento, o MME estabeleceu diretrizes visando aumentar a segurança elétrica, dando ao ONS recursos para atender a demanda de ponta, contratar com maior antecedência e diversificar a oferta de flexibilidade, trazendo principalmente térmicas a gás, biocombustíveis e ampliações de hidrelétricas existentes.
No novo modelo foi considerada maior abertura nacional para cadastramento de projetos e o volume de ofertas superou amplamente o que se pretendia contratar, indicando um elevado interesse do mercado e concorrência potencial acirrada. Foram 327 projetos registrados totalizando 74 GW de potência, sendo 83% de termelétricas a gás natural, 9% de termelétricas a biocombustíveis e 8% de ampliação de hidrelétricas. Geograficamente, o apetite ficou concentrado em São Paulo (~40%), seguido por Pernambuco (~23%), Ceará (~11%), Espírito Santo (~10%) e Rio de Janeiro (~7%) do total de potência cadastrada, um retrato de onde já há gás, infraestrutura e carga.
O que travou tudo: o fator “A” e a judicialização
Tudo corria para um leilão competitivo até que surgiu um ingrediente inesperado: o Fator A. Esse parâmetro foi incluído para valorar melhor a flexibilidade das térmicas, em outras palavras, para dar vantagem às usinas capazes de ligar e desligar rápido e modular sua geração conforme a necessidade.
A ideia não é absurda. O problema é que foi colocado no edital sem consulta ampla, beneficiava mais alguns tipos de usinas (por exemplo, ciclo aberto a gás) e penalizava outras (ciclo combinado mais eficiente, mas menos ágil), mexendo diretamente na competitividade dos lances.
Resultado? Parte dos agentes se sentiu prejudicada, foi à justiça e o MME decidiu cancelar o leilão para refazer as regras. Oficialmente, o discurso é de aperfeiçoamento, mas na prática é um recuo para evitar um certame marcado por disputas judiciais.
Desde então, uma nova consulta pública vem sendo preparada, mas os temas sensíveis do leilão não possuem ainda consenso da equipe do MME e várias empresas já possuem dúvidas sobre a possibilidade da realização do leilão ainda esse ano. Por outro lado, o Operador Nacional do Sistema (ONS) e entidades de consumidores alertam que, sem o leilão, o atendimento à ponta em 2025 e 2026 dependerá de medidas paliativas, como acionar contratos temporários de emergência para usinas térmicas atualmente sem contrato, a fim de assegurar margem de reserva até que um novo leilão aconteça, obviamente aumentando a conta a ser paga pelos consumidores.
Entre outros temas que mais seguram a nova consulta pública, está a modelagem do custo de transporte de gás natural. O MME ainda não decidiu como os custos dos gasodutos serão tratados, se entram no preço do lance ou são repassados à parte. Em resumo, transportadoras e termelétricas conectadas à malha defendem um modelo de “pass-through”, em que o custo do transporte sairia do lance e seria repassado como encargo do setor elétrico (pago pelos consumidores). Por outro lado, projetos não conectados (que usam GNL ou gás direto do poço) rechaçam a ideia: eles temem perder competitividade ao pagar, indiretamente, um encargo de uma infraestrutura que não utilizam. Esse debate anda junto da revisão tarifária das transportadoras NTS e TAG, em discussão na ANP (metodologia de valorização de ativos, parâmetros de WACC, etc.). A nova metodologia pode elevar a tarifa de transporte e isso muda o cálculo de quem defende incluir o custo no lance (assumindo risco) versus socializar via encargo (tirando o risco do proponente, mas diluindo no setor).
O gás natural e a flexibilidade do sistema
Se tem um combustível que saiu dessa história ainda mais relevante, é o gás natural. O motivo é simples: nossa matriz está cada vez mais renovável e intermitente. Solar e eólica crescem rápido, mas não entregam potência firme. Alguém precisa segurar a ponta e as térmicas a gás fazem isso bem. Além disso, as regras do LRCAP favorecem a fonte, a qual é competitiva, mas precisa de contratos longos e modelos de remuneração mais seguros.
Falando de cenário global, o gás natural continua crescendo. O mercado de GNL (Gás Natural Liquefeito) acelerou uma nova onda de projetos nos EUA, no Qatar e em outros polos produtores, com entrada em operação gradual entre meados desta década e o início da próxima. Essa expansão amplia a oferta e dá mais flexibilidade contratual. Na prática: mais molécula disponível e menos dependência de um único fornecedor resultam em um preço global de gás mais competitivo para quem compra bem.
O custo final para gerar energia com gás natural soma três blocos: a molécula (produção doméstica ou GNL), o escoamento/processamento (do campo de produção até unidade de processamento) e o transporte até a usina (além de tributos). O que pode baratear essa conta? Três movimentos combinados: 1) a nova capacidade global de GNL pressionando para baixo o preço da molécula, 2) mais competição e transparência nas etapas de midstream (acesso à malha, revisão tarifária de gasodutos, contratação de capacidade mais flexível) e 3) políticas do governo como o Gás para Empregar para reduzir ineficiências, atritos regulatórios e tributários. Quando esses fatores andam juntos, a curva de lances em leilões de capacidade melhora, mesmo para usinas que rodam poucas horas por ano.
A lei do gás de 2021, que também já abordamos em outro artigo, abriu espaço para mais agentes no transporte e na comercialização, e a monetização do gás associado do pré-sal vem ganhando prioridade, o que ajuda a reduzir a queima em plataforma e amplia a oferta doméstica ao longo do tempo. Ao mesmo tempo, terminais de GNL espalhados pelo litoral aumentam a “opcionalidade” de suprimento, permitindo arbitrar entre produção nacional e importação conforme mercado e câmbio.
Outra peça crucial é o papel do gás na flexibilidade de ciclos mais longos. Baterias estão sendo cada vez mais viáveis em janelas de 1 a 4 horas, e o gás entra quando a necessidade dura um período superior a este. Usinas de partida rápida (aeroderivativas e motores a gás) respondem em minutos e encaixam bem no serviço de ponta; já ciclos combinados entregam eficiência elevada quando precisamos de potência por muitas horas seguidas. Essa combinação de resposta rápida e eficiência é exatamente o que o sistema brasileiro procura enquanto solar e eólica seguem escalando e ainda não temos uma política favorável para projetos de armazenamento.
Quando se fala sobre sustentabilidade e emissões de CO2 do gás natural comparado a fontes renováveis, a discussão costuma ser fria e não leva em consideração que, para expansão de renováveis, é necessário segurança energética e, enquanto não temos a capacidade de suprir com baterias ou outras fontes, o gás tem um papel essencial via mecanismos de capacidade que o utiliza apenas quando necessário. Além disso, dentre as fontes térmicas ele possui benefícios claros em relação ao carvão, com 3x menos emissões, e ao óleo, com 2x menos emissões. Biocombustíveis também podem ter um papel importante nessa cadeia, mas dada sua menor viabilidade financeira e complexidade da cadeia de suprimento, levam menos vantagem a curto prazo.
Outras fontes de flexibilidade estão chegando
O Brasil tem buscado alternativas para gestão de flexibilidade e as baterias devem ser uma das principais fontes para esse papel. Em outros países elas já competem com térmicas para atender picos curtos de 1 a 4 horas e por isso o governo já estrutura um leilão específico e que deve ser publicado em 2026. A lei 14.182/2021 buscou desenvolver o LRCAP para regiões sem infraestrutura de gás, mas dada a complexidade de interligação da malha, projetos de gás natural tem limitações claras. E aí entram as baterias, que podem ser colocadas na ponta da carga (subestações urbanas, corredores congestionados ou junto a projetos solares ou eólicos), aliviando restrições de rede, evitando reforços caros e reduzindo perdas.
Já o Programa de Resposta a Demanda (RD) vem crescendo no Brasil com mais empresas aderindo e sendo remuneradas diretamente por redução de potência. No mês passado ocorreu o segundo leilão do produto disponibilidade organizado pela CCEE e ONS, onde os consumidores (ou agregadores representando conjuntos de consumidores) fazem uma oferta para receber um valor fixo por mês para ficarem disponíveis para quando o operador requisitar em dois "produtos": estar disponível por até 6 dias ou 4 dias. Foram mais de 200 MW contratados, o que já mostra que o programa é real e pode trazer benefícios claros. Falaremos mais em detalhe sobre o programa em outros artigos.
O Programa de Resposta da Demanda (RD) finalmente ganhou tração por aqui. Cada vez mais empresas estão topando ser pagas para ficar disponíveis e, quando o ONS precisar, reduzir consumo por algumas horas para aliviar a ponta. No segundo mecanismo competitivo realizado em 16/jul/2025, o ONS abriu a compra de dois produtos de disponibilidade, um com até 6 acionamentos por mês e outro com até 4 acionamentos por mês, sempre em janelas de 4 horas. Os consumidores (ou agregadores que reúnem vários consumidores) deram seus lances em R$/MW e passarão a receber uma receita fixa de disponibilidade e uma parcela variável ao PLD quando são efetivamente acionados. Foram 229 MW contratados nessa rodada, com deságios de até 32,5%, um sinal claro de que o programa é real, competitivo e traz benefícios concretos para a confiabilidade do sistema.
Se as regras valorizarem o que resolve o problema físico — potência rápida nas horas certas e cobertura adequada para os eventos longos —, veremos baterias e RD deslocando parte do uso do gás nos picos diários, enquanto o gás permanece como seguro estrutural para janelas prolongadas e contingências. No Brasil, isso significa desenhar um LRCAP que aceite portfólios híbridos (solar/vento + bateria, térmica + RD), crie produtos por duração e permita agregadores competirem de igual para igual.
Conclusão
O LRCAP é uma peça estratégica para garantir que o Brasil consiga crescer sua matriz renovável sem abrir mão da segurança elétrica. O gás natural ganha relevância contratual como seguro de confiabilidade nos próximos anos, especialmente via mecanismos de capacidade. Se a regulação reconhecer bem a flexibilidade (pagando por disponibilidade e desempenho) e der previsibilidade ao custo de transporte, veremos projetos mais competitivos disputando espaço com soluções de armazenamento, que também vão crescer. O caminho vencedor não é “gás ou baterias”, e sim “gás e baterias”, cada um no seu papel.



