Resumo
A energia solar é uma história de sucesso nos últimos 20 anos: com o seu custo caindo dramaticamente, tornou-se a tecnologia dominante para novos projetos de geração de energia no mundo. Entretanto esse sucesso tem um custo: com o aumento da penetração da energia solar o seu valor para a rede elétrica tende a decrescer. São necessárias novas tecnologias de células fotovoltaicas para que a energia solar continue competitiva, assim como evoluções na rede elétrica e no armazenamento de energia. Finalmente tecnologias disruptivas buscam levar a energia solar para outros setores, convertendo diretamente a energia solar em combustíveis úteis para a transição energética.
Energia solar: uma história de sucesso
A primeira célula solar fotovoltaica foi desenvolvida em 1954 por pesquisadores da Bell Technologies. Inicialmente a energia solar fotovoltaica foi utilizada como uma solução para gerar energia para satélites, onde eficiência e confiabilidade eram considerações muito mais importantes do que o custo.
Nos últimos 20 anos, no entanto, a energia solar deixou de ser uma tecnologia “bonitinha” que parava de pé economicamente apenas com subsídios pesados para se tornar uma tecnologia dominante de geração de energia, representando mais de 70% da capacidade total adicionada em 2024 no mundo (451 GW ou 32 Itaipus).
Esse sucesso tem tudo a ver com o conceito de curvas de experiência: custos unitários caem à medida que a produção acumulada de um determinado produto cresce. E isso aconteceu de forma dramática para a energia solar fotovoltaica nos últimos 15 anos, mais do que para qualquer outra tecnologia de geração de energia renovável. O gráfico abaixo mostra os custos de instalação em função da capacidade instalada acumulada (em escala logarítmica): vemos que a inclinação da curva, ou seja, o ritmo da queda de custos da energia solar fotovoltaica à medida que a capacidade instalada dobra é maior do que para as outras tecnologias. O número é impressionante: a cada vez que a capacidade instalada dobra, os custos caem em 1/3. E essa tendência não desacelerou com o tempo.
Média global de custos de instalação por kw vs. capacidade acumulada por tecnologia Fonte: IRENA – RENEWABLE POWER GENERATION COSTS 2023
Como isso foi possível? Um conjunto de fatores explica esse fenômeno: (i) avanços tecnológicos que tornaram os paineis mais eficientes (eficiência é o percentual da energia vinda do sol convertida em energia elétrica); (ii) as economias de escala da produção de bilhões de unidades de um item relativamente padronizado (o painel solar); (iii) evoluções incrementais nas diversas etapas de fabricação de um painel solar e (iv) queda dos demais custos (além do painel) de um projeto solar, como, por exemplo, via métodos de instalação mais eficientes e custo de capital decrescente à medida que investidores se tornaram mais confortáveis com os riscos da tecnologia.
O preço do sucesso: valor decrescente
Mas nem tudo são flores nessa trajetória brilhante (desculpa, não resisti) da energia solar. A tecnologia se tornou vítima do próprio sucesso já que o valor de cada kWh adicional de geração para a rede elétrica tende a ser decrescente. Isso ocorre principalmente porque a energia solar não é despachável (ou seja, a geração de energia não pode ser controlada e depende da disponibilidade do recurso solar) e os sistemas solares geram energia apenas durante o dia. Assim, com o aumento da penetração da energia solar, durante o dia temos um excesso de geração, levando a uma queda no preço da energia solar. Por outro lado, nas primeiras horas da noite, temos o desafio de compensar a não geração de energia solar com outras fontes, especialmente fontes caras como térmicas flexíveis, para suprir o pico de demanda. Isso gera desafios operacionais e preços elevados nesse horário do dia.
O gráfico abaixo mostra o que aconteceu na Espanha com o aumento da penetração de energia solar (que saiu de menos de 10% da geração em 2019 para 25% no 2T de 2024): o preço da energia solar caiu para 60% do preço médio do mercado em 2024. Na visão hora-a-hora, a situação é ainda mais dramática: em 15% do tempo em 2024 o preço foi zero devido ao excesso de geração de energia renovável.
Preço médio recebido por usinas solares e eólicas vs. média do mercado Fonte: Banco de España - The impact of renewable energies on wholesale electricity prices
Trajetórias semelhantes podem ser encontradas em outros locais com alta penetração de energia renovável como a Califórnia, a Alemanha e a Austrália. No Brasil, os preços horários aplicáveis ao mercado livre começam a seguir um padrão semelhante, apesar do efeito ainda não ser dramático.
Alguns autores chegam a extrapolar essa tendência para chegar à conclusão de que no futuro o custo marginal da energia será zero com o avanço da energia solar e elaboram sobre as implicações de ter “energia de graça”. Essa conclusão ignora a necessidade de repagar os investimentos nas usinas solares e outros investimentos na rede. Vamos ter sim energia de graça em alguns momentos, que cargas flexíveis vão conseguir aproveitar. Mas é impossível um sistema baseado em altos investimentos em infraestrutura física se viabilizar com preço zero em grande parte do tempo.
Outro problema relacionado ao crescimento das energias renováveis por aqui é o curtailment, a redução (ou corte total) na geração imposta pelo operador por falta de capacidade de escoamento (porque as linhas de transmissão existentes não são suficientes para levar toda a energia gerada até os consumidores). Esses cortes estão impactando de forma dramática os retornos de ativos renováveis: há alguns anos, ninguém previa que haveria cortes na magnitude dos que estão ocorrendo.
Soluções estruturais: redes mais flexíveis e inteligentes
Então, se nada mudar, temos uma maldição da energia solar: à medida que a penetração aumenta, o valor cai, o que, além de causar distorções nos mercados de energia, reduz o incentivo para a instalação de novos sistemas solares.
Parte da solução envolve mudanças regulatórias e novos recursos no mercado de energia para criar demanda nos períodos de maior geração solar e reduzir a demanda quando o sol não está brilhando. A solução mais direta para esse problema são as baterias, que podem absorver a energia solar durante o dia e injetá-la na rede durante a noite. Como vamos ver em artigos posteriores do Clima Rentável, essa solução está se tornando cada vez mais viável à medida que os custos de baterias de íon-lítio seguem uma curva de experiência semelhante à energia solar.
Outras soluções envolvem mudanças na dinâmica do mercado como, por exemplo, aplicar preços horários a todos os consumidores, incentivando um comportamento mais alinhado com as necessidades do sistema. Novas linhas de transmissão para levar a energia para regiões menos ensolaradas e demandas flexíveis (por exemplo um carro elétrico que pode escolher quando carregar) também são formas de lidar com o problema. De forma mais estrutural novas fontes de demandas relevantes como a produção de hidrogênio via eletrólise também podem ajudar a solucionar essa equação.
O futuro da tecnologia solar fotovoltaica
Dito tudo isso, dificilmente será possível anular totalmente a maldição da erosão do valor com o crescimento da energia solar. E isso coloca a tecnologia em uma corrida desafiadora: os custos precisam cair tão ou mais rápido do que o valor de energia. As trajetórias de redução de custo parecem indicar um caminho, mas isso não é automático, envolve avanços nas tecnologias de produção e dos próprios paineis solares. Será que chegamos em um limite de redução de custos e a inclinação da curva de experiência vai começar a cair?
Falando de paineis solares, temos uma tecnologia extremamente dominante no mercado que são os paineis de silício, fabricados em escala gigantesca, especialmente na China. Inovações sucessivas foram tornando-os mais baratos e eficientes. Um exemplo de avanço recente são os paineis bifaciais (que absorvem energia também pela parte de trás do painel) e já representam 50% dos paineis instalados no mundo (IRENA, número de 2024). Esse e outros avanços levaram a eficiência média dos paineis instalados (% da energia solar incidente efetivamente convertida em eletricidade) de menos de 15% em 2010 para 21% em 2021, além de se tornarem 93% mais baratos.
No entanto, a tecnologia de paineis à base de silício está começando a esbarrar em limites físicos. Para entender o porquê, vamos a uma breve e simplificada explicação sobre o princípio de funcionamento de um painel solar. Paineis solares são compostos de materiais semicondutores cujos átomos liberam seus elétrons ao absorverem fótons (partículas de luz), criando uma corrente elétrica, ou seja, convertendo a energia do fóton em energia elétrica. Mas, como costuma acontecer em fenômenos quânticos, existe uma quantidade fixa de energia para que o elétron de um material seja liberado (“gap de energia”). Se o fóton que chega à célula solar tiver menos energia do que esse mínimo, ele não será absorvido. Se o fóton tiver mais energia que esse mínimo, o excesso será desperdiçado na forma de calor. Como a energia de um fóton depende da sua frequência e na luz do sol há fótons de diversas frequências, qualquer material desperdiça parte da energia, seja de fótons com energia insuficiente para liberar um elétron, seja de fótons com energia excessiva, a qual é dissipada na forma de calor. Isso permite calcular a eficiência máxima teórica de conversão da luz solar, que para o silício é de 33,7%.
Os paineis de silício mais eficientes hoje no mercado chegam a eficiências de 24% se aproximando da eficiência teórica (que nunca será atingida já que há perdas inevitáveis no processo). Para ir além, novos materiais ou combinação de materiais são necessários. As perovskitas são a nova classe de materiais em estágio de desenvolvimento mais avançado. Perovskitas são materiais com um determinado tipo de estrutura cristalina, que podem combinar moléculas orgânicas e inorgânicas. Elas apresentam as seguintes vantagens em relação a outras alternativas:
· Gap de energia ajustável, proporcionando eficiências possivelmente superiores ao silício ao combinar diferentes camadas com gaps de energia diferentes
· Material flexível produzido a baixas temperaturas, o qual pode ser depositado em diferentes tipos de superfícies (imagine rolos ou tintas fotovoltaicas para cobrir fachadas de prédios por exemplo)
· Matérias-primas de baixo custo como polímeros
O grande limitador das perovskitas até o momento era a baixa durabilidade, mas com diversos centros de pesquisa e empresas trabalhando nesse tema, este desafio parece solucionável. A tecnologia acabou de atingir um marco importante: a startup Oxford PV (que tem esse nome porque foi fundada por pesquisadores da universidade homônima) anunciou recentemente que entregou a um cliente os primeiros paineis que combinam camadas de perovskita e silício, chegando à eficiência de 24,5%. Provavelmente veremos nos próximos anos mais paineis combinando camadas de diferentes materiais levando a eficiência para novos patamares.
Além das perovskitas, outras tecnologias alternativas estão sendo desenvolvidas, apesar de estarem em estágios mais preliminares. Dentre elas, temos células solares orgânicas (leves, não tóxicas, versáteis e flexíveis) e células de pontos quânticos (com gaps de energia ajustáveis na escala nanométrica, permitindo atingir altos níveis de eficiência ao combinar materiais). Com a evolução da tecnologia das células, provavelmente a energia fotovoltaica será ainda mais competitiva e onipresente no futuro.
Pensando fora da caixa (ou do painel solar)
A energia solar não se resume aos paineis solares fotovoltaicos. A energia solar térmica, por exemplo, é bem estabelecida como meio de aquecimento de água para usos residenciais e sendo estudada como alternativa para processos industriais e dessalinização da água.
Na rede elétrica, a energia solar concentrada é uma tecnologia já implementada em larga escala. Na sua principal configuração, espelhos espalhados sobre uma superfície enorme direcionam a luz solar para um único ponto para aquecer um fluido que gira uma turbina. É uma tecnologia atualmente quase 3 vezes mais cara do que o solar fotovoltaico, mas com uma vantagem importante: ela permite o armazenamento da energia no fluido para que a usina gere energia durante à noite quando o seu valor é potencialmente muito maior. Mesmo com essa vantagem, a sua implementação tem sido bem tímida, com apenas um projeto entrando em operação no mundo em 2023 (nos Emirados Árabes Unidos).
Outras tecnologias mais disruptivas em desenvolvimento envolvem a produção de combustíveis como o hidrogênio a partir da energia solar sem a necessidade de geração de energia elétrica. Uma dessas tecnologias recebeu o nome de fotossíntese artificial (por emular em parte o que as plantas fazem) e emprega semicondutores especiais (fotoeletrodos) para dividir diretamente a água em hidrogênio e oxigênio sob luz solar. Este hidrogênio pode ser utilizado para descarbonizar setores difíceis de eletrificar como a indústria pesada e transporte aéreo, marítimo e rodoviário de longa distância. Outras tecnologias em desenvolvimento são ainda mais disruptivas e buscam obter combustíveis líquidos de ampla utilização (gasolina, etanol etc.), alguns utilizando bactérias especiais modificadas geneticamente.
Essas tecnologias ainda parecem um futuro distante mas são fundamentais para chegarmos a um mundo de fato dominado pela energia solar. Lembre-se que eletricidade e calor representam apenas 23% das emissões globais e as soluções acima são fundamentais para a energia solar ser uma peça chave do quebra-cabeça para atacar as emissões do setor de transportes (15%) e indústria (24%).
Finalmente, há décadas se estuda o potencial da tecnologia de energia solar espacial, que utiliza grandes coletores solares em órbita para absorver a energia solar e transmiti-la para a Terra por meio de micro-ondas ou lasers absorvidos por uma estação coletora e convertidos em eletricidade. No espaço a energia solar pode ser produzida continuamente e evita as perdas atmosféricas. A redução do custo de lançamentos (com empresas como SpaceX desenvolvendo foguetes reutilizáveis) reativou o interesse na tecnologia. A Agência Espacial Japonesa, por exemplo, conduz um programa de longa data para a tecnologia e tem a ambição de realizar uma demonstração em órbita. Mas ainda restam inúmeros desafios tecnológicos para que essa solução digna de ficção científica se torne realidade.
Conclusão
A dominância da energia solar fotovoltaica nos investimentos no setor elétrico não parece ameaçada no curto prazo, principalmente porque os custos continuam caindo em ritmo acelerado o suficiente para compensar a perda de valor. Mas para atender grande parte das nossas necessidades energéticas no futuro precisamos de muito mais flexibilidade e capacidade de armazenamento na rede elétrica e a capacidade de produzir combustíveis para transportes e indústria de forma competitiva a partir da energia solar.