Resumo
No último artigo falamos do biogás, sua origem e aplicações. Concluímos que o uso do biogás para geração de energia elétrica tende a se restringir cada vez mais, especialmente diante dos incentivos e do enorme potencial do Brasil para a produção e comercialização de biometano.
Neste texto, vamos mostrar por que o biometano está ganhando força, apresentar um estudo de viabilidade financeira com dados atuais e explicar como a nova regulação pode acelerar ainda mais esse mercado. Vamos juntos!
O que é o biometano
O biometano é o biogás purificado até atingir qualidade equivalente ao gás natural. Ele virou protagonista na transição energética brasileira: substitui o gás fóssil por uma alternativa renovável, é local e de menor impacto ambiental.
A produção começa com a captura do biogás gerado na decomposição de resíduos orgânicos, como os de biodigestores ou aterros sanitários. Depois, o gás passa por processos de purificação que removem CO₂, água e impurezas. A estrutura da planta inclui sistemas de coleta, estação de purificação, compressores e, em alguns casos, equipamentos para liquefação ou injeção em redes de gás.
Hoje, o Brasil tem 11 projetos em operação com produção total de 1,5 milhão de m³/dia. Outros 36 projetos em construção ou homologação devem adicionar mais 1,6 milhão de m³/dia, ou seja, mais do que dobrar a produção atual. Ainda assim, representará apenas 3% do mercado nacional de gás natural.
Entre os que estão em construção, destaca-se o projeto do Ecoparque de Paulínia. Com investimento total previsto de R$ 450 milhões, o projeto é uma joint venture entre o Grupo Orizon e a Compass e prevê um investimento total de até R$ 450 milhões, com capacidade inicial de produção de 180 mil m³/dia, podendo alcançar até 300 mil m³/dia no futuro, passando a ser o maior projeto do Brasil.
O Marco Legal do Gás
A publicação do Marco Legal do Gás (Lei 14.134/2021) foi um divisor de águas, criando mais segurança jurídica para a injeção do biometano na rede e viabilizando novos modelos de comercialização.
O marco veio para destravar o setor de gás natural no Brasil. Antes, só era possível construir e operar gasodutos por meio de concessão. Agora, com o regime de autorização, a lei garante que todos os agentes do setor tenham acesso igual a dutos e unidades de tratamento, o que ajuda a aumentar a concorrência e deve levar a uma queda no preço do gás ao longo do tempo.
Na prática, isso quer dizer que teremos mais investimentos no setor, mais gasodutos sendo construídos e, com o tempo, gás chegando a mais regiões do país. Outro ponto importante foi a tentativa de alinhar melhor as regras estaduais e a regulação nacional instituída pela ANP. Isso evita que cada lugar tenha uma regra diferente e cria um ambiente mais previsível para quem quer investir.
Uma das grandes mudanças do Marco Legal do Gás foi liberar a venda direta para o cliente final. Agora, produtores e comercializadores podem fechar contratos diretamente com grandes consumidores, sem depender das distribuidoras estaduais. Isso traz mais liberdade para negociar preços e formatos, além de abrir espaço para o mercado de trading de gás, que passa a ser cada vez mais semelhante ao mercado livre de energia.
Com essas mudanças, na teoria o biometano passaria a jogar quase de igual para igual com o gás natural convencional. Isso poderia ser suficiente para viabilizar mais projetos, atrair investimento e tornar o biometano uma solução competitiva. Mas, dada a curva de maturidade do biometano, incentivos são necessários e instrumentos do governo vêm sendo importantes como linhas de financiamento e fontes de receita adicionais como créditos de carbono.
CBIOs, CGOBs e a nova regulação
Os CBIOs (Créditos de Descarbonização) surgiram em 2017 com o RenovaBio, uma política nacional criada para incentivar o uso de combustíveis renováveis no Brasil. A ideia é simples: produtores de biocombustível (como etanol, biodiesel, biometano ou bioquerosene) que conseguem comprovar, por certificação, que estão evitando emissões de gases de efeito estufa ao substituir combustíveis fósseis, ganham CBIOs como recompensa.
Esses créditos são emitidos na B3 e vendidos para distribuidoras de combustíveis, que têm metas obrigatórias de descarbonização estabelecidas pelo governo. Esse modelo se aplica, sobretudo, a combustíveis utilizados no transporte rodoviário e aéreo, como:
Etanol substituindo a gasolina;
Biodiesel substituindo o diesel;
Biometano substituindo GNV ou diesel em frotas de caminhões ou ônibus;
Bioquerosene de aviação.
Já os CGOBs (Certificados de Garantia de Origem do Biometano) foram criados na Lei do Combustível do Futuro em 2024, e funcionam como um selo que garante que o gás vendido é 100% renovável. Enquanto os CBIOs servem como crédito ambiental, os CGOBs vão ser usados para cumprir metas obrigatórias de descarbonização pelas empresas de gás natural (produção e comercialização).
Resumindo:
CBIO = RenovaBio (mercado de combustíveis)
CGOB = Mandato do biometano (mercado de gás natural)
Se o projeto de biometano estiver inserido nos dois mercados (por exemplo, vender para mobilidade urbana via distribuidoras, cumprindo os critérios dos dois programas), pode gerar tanto CBIO quanto CGOB, mas para volumes diferentes ou momentos distintos, sempre evitando dupla contagem de carbono.
A tendência é que através da evolução da regulação e políticas de incentivos, o mercado se organize via contratos bilaterais e venda de certificados, seja em mercado regulado ou voluntário. Projetos bem estruturados tendem a se posicionar para vender tanto a molécula de gás quanto os certificados, maximizando receitas. E sempre que possível capturando valor adicional através da venda de biofertilizantes e do CO2 capturado no processo.
Nova regulação, novas oportunidades
Com a Lei do Combustível do Futuro, o biometano ganha um novo patamar como estratégia nacional de descarbonização. A nova legislação prevê para as produtoras e comercializadoras de gás uma obrigação de descarbonização inicial de 1% a partir de 2026, que poderá ser cumprida com uso de biometano ou aquisição de CGOBs. Isso cria demanda garantida para produtores certificados, impulsionando o mercado, principalmente porque a obrigação percentual pode aumentar nos anos seguintes à medida que o biometano se desenvolve e aumenta a liquidez dos certificados para os produtores e comercializadores de gás realizarem a compensação de suas emissões.
A regulação está sendo estruturada para viabilizar esse novo mercado de forma simples e escalável. A ANP atuará com duas resoluções: uma para disciplinar a distribuição das metas entre agentes e outra para regular a certificação dos produtores e emissão de CGOBs. Também serão previstas chamadas públicas para compra da molécula com CGOB. A audiência pública para ouvir os agentes do setor foi realizada na última semana e teve repercussão favorável entre os envolvidos.
Estados como SP, RJ, PR e RS já estudam incentivos fiscais e planos regionais para apoiar a produção e consumo de biometano. O plano é que essa estrutura regulatória dê previsibilidade ao mercado, facilitando acesso a financiamentos e contratos de venda de longo prazo.
Com o novo marco, o biometano pode sair do status de solução de nicho para ocupar um papel central na transição energética brasileira.
Análise de viabilidade financeira
Agora, vamos aos números! Dessa vez, tivemos acesso ao estudo de viabilidade recente da EloGroup realizado em Outubro de 2024, analisando projetos de biometano com capacidade entre 15,6 e 26 milhões de m³/ano, que já possuem uma escala considerada grande e podem ter como fonte a indústria sucroalcooleira ou aterros sanitários, com possibilidade de comercialização por transporte rodoviário ou injeção na rede.
Esses projetos exigem investimentos entre R$200 e R$325 milhões, e a viabilidade depende de fatores como valor do CAPEX por metro cúbico produzido, preço do biometano no mercado e receita com CBIOs.
O estudo mostra que plantas integradas a cadeias industriais com grande consumo de gás e localizadas próximas da demanda têm melhores condições. A redução dos custos logísticos e de transporte pela malha de gás (o custo de uso de gasodutos depende da distância entre o ponto de entrada e do ponto de saída) e a garantia de contratos de longo prazo são determinantes para a atratividade. A receita com CBIOs pode representar uma parcela relevante e funcionar como complemento de rentabilidade.
De forma prática, em uma análise não específica, projetos com compressão do gás e distribuição rodoviária possuem maior custo logístico, mas possuem maior rentabilidade. A depender do preço de venda do gás a TIR real desalavancada pode superar 20%aa. Já nos projetos conectados à rede de gás, mesmo antes da publicação da nova regulação que valoriza os CGOBs, a TIR real pode superar 15%aa.
No transporte por gasoduto, o gás precisa ser comprimido em pressões mais elevadas e com maior estabilidade para atender aos padrões técnicos da rede, o que exige equipamentos mais robustos e investimentos maiores em sistemas de compressão, filtragem e medição. Isso gera custo inicial e operacional mais alto na compressão.
Já no modelo de distribuição rodoviária, a compressão ocorre geralmente até pressões suficientes para carregar o gás nos cilindros dos caminhões. Esse processo, embora demande energia, costuma ser mais simples e barato em termos de CAPEX e OPEX quando comparado à infraestrutura exigida para injetar na rede de transporte ou distribuição, compensando na maioria das vezes o custo logístico. Além disso, pela maior flexibilidade, esses projetos conseguem negociar preços de venda mais elevados e atrair perfis mais específicos, como frotas de transporte.
Resumindo, a aplicação rodoviária do biometano deve continuar crescendo, impulsionada pela sua viabilidade financeira atual e pelo avanço na conversão de frotas de veículos para esse combustível. No entanto, à medida que a malha de gasodutos se expanda, os recém-criados CGOBs ganhem valor e novos incentivos estaduais ao biometano sejam implantados, os projetos conectados à rede tendem a se tornar mais rentáveis e devem assumir protagonismo no setor.
Na prática, o sucesso financeiro de um projeto está ligado à capacidade de reduzir custos operacionais (OPEX), conseguir um bom preço de venda da molécula e monetizar os certificados ambientais. É um modelo que exige planejamento fino e boa articulação com o mercado comprador.
Aplicações do Biometano
As oportunidades são muitas. Uma das mais promissoras para diferentes escalas é a substituição do diesel em frotas pesadas, como caminhões, ônibus e tratores. Grandes produtores rurais já estão testando o uso de biometano gerado a partir de resíduos da própria fazenda para abastecer veículos, o que reduz o custo com combustível e as emissões. E a aplicação com maior potencial para projetos de maior escala é a injeção na rede de gás natural, o que permite vender o biometano para qualquer consumidor atendido pela malha, inclusive via contratos no mercado livre.
Mas o biometano também possui um importante papel na descarbonização dos setores que utilizam gás natural em seus processos produtivos. No caso da amônia, o biometano pode ser utilizado em substituição ao gás natural sem necessidade de alteração dos processos industriais, reduzindo a emissão de GEE. A amônia a partir de biometano ainda não é produzida no Brasil, entretanto análises por grupos do setor indicam viabilidade do seu uso na indústria.
Conclusão e o que vem por aí
Apesar do avanço regulatório, o setor ainda enfrenta gargalos. Um dos principais é a infraestrutura: muitas usinas estão distantes das redes de gás natural, exigindo soluções logísticas caras como Gás Natural Comprimido (GNC) rodoviário. Também há incertezas quanto à real disponibilidade do biometano em escala, principalmente nos primeiros anos de aplicação do mandato.
Projetos de biometano na indústria sucroalcooleira têm um alto potencial de retorno financeiro. Como a maioria dessas usinas está concentrada no estado de São Paulo, há uma combinação interessante de volume de matéria-prima disponível, mercado consumidor próximo e, em teoria, menores custos logísticos quando se pensa em escoamento por gasodutos. Porém, a viabilidade depende muito da proximidade com as redes principais de transporte de gás. Se o projeto estiver distante dessas linhas, os custos com infraestrutura podem inviabilizar a operação. Mesmo em regiões próximas às redes, pode ser necessária a construção de uma planta de purificação do biogás e sua compressão em níveis adequados para injeção, o que eleva o investimento inicial. Caso a alternativa seja a rede de distribuição (em vez da rede de transporte), o projeto poderá ficar limitado à capacidade dessa malha local, além de depender de eventuais expansões que podem levar tempo para acontecer.
A previsão é que o mercado chegue a quase 2 milhões m³/dia de capacidade instalada até 2027, mas parte dessa oferta está concentrada em unidades de autoconsumo e ainda não aparece nas estatísticas oficiais. Outro ponto crítico é como o mercado voluntário será tratado: empresas que já compram biometano fora da obrigação regulatória temem não ter suas iniciativas reconhecidas.
Apesar dos desafios, o setor tem mobilizado investimentos e a nova regulação indica um ambiente com bons incentivos. Estimativas da Abiogás apontam para mais de 200 plantas operacionais até 2032, com capacidade de 8 milhões de m³/dia. A consolidação desse mercado vai depender de estabilidade regulatória, valorização dos incentivos ambientais, preços competitivos e acesso a financiamento. A janela de oportunidade é agora.