A invasão das baterias
Como sistemas de armazemanento estão se tornando uma parte essencial dos grids modernos
Resumo
Baterias são uma novidade bem-vinda no sistema elétrico porque ajudam a resolver os problemas relacionados à geração intermitente de energia renovável. A indústria de baterias estacionárias se desenvolveu pegando carona no avanço da tecnologia de baterias de íon-lítio, desenvolvidas inicialmente para eletrônicos e depois para veículos elétricos. Por serem ativos flexíveis, confiáveis e de resposta rápida, as baterias podem capturar diferentes tipos de receita como as de contratos de capacidade, arbitragem temporal de preços e serviços ancilares.
Introdução
As redes elétricas foram construídas com base em duas premissas básicas: 1. geração e consumo devem se igualar a cada instante; 2. como o consumo não é controlável (pelo menos sem causar impactos nos consumidores), é a geração que deve reagir a mudanças de consumo e não o contrário. Esse modelo funcionou bem por muito tempo, já que praticamente toda a geração (termelétricas e hidrelétricas essencialmente) era despachável, ou seja, um operador podia decidir a cada momento quanto cada usina deveria gerar para manter o sistema equilibrado.
No entanto, isso começa a mudar quando usinas eólicas e solares fotovoltaicas são introduzidas na equação. Essas usinas têm a característica de serem intermitentes, isto é, a geração não está disponível de forma contínua, sofrendo variações ao longo do dia, e não são despacháveis, ou seja, o operador pode até desligá-las, mas não forçá-las a gerar quando não há recursos solares ou eólicos disponíveis. Enquanto renováveis intermitentes representavam uma pequena parcela da geração, as usinas despacháveis conseguiam absorver tranquilamente essas variações, mas equilibrar o sistema começa a ficar complicado à medida que a penetração das renováveis aumenta nas redes elétricas.
Aí é que entram os sistemas de armazenamento de energia. Eles não são exatamente uma novidade: há décadas se estoca energia em hidrelétricas reversíveis. No entanto, a sua necessidade e escala aumentaram muito na última década. E a tecnologia dominante mudou: as baterias (BESS na sigla em inglês Battery Energy Storage Systems) se tornaram dominantes em novas instalações por motivos que veremos ao longo deste artigo. No final de 2023 já havia 90 GW (praticamente toda a capacidade hidroelétrica brasileira) de BESS instalados no mundo, sendo que 42 GW foram instalados apenas em 2023. O que explica esse crescimento e como essas baterias estão sendo utilizadas? Neste artigo vamos apresentar uma visão global do negócio de baterias conectadas à rede elétrica (chamadas também de baterias estacionárias) e, em um próximo artigo, cobriremos perspectivas para o futuro, especialmente no mercado brasileiro.
A Evolução da Tecnologia
Baterias são sistemas que convertem energia química em energia elétrica. Uma bateria tem dois terminais, sendo um positivo (cátodo) e um negativo (ânodo) que, ao serem conectados, trocam elétrons como parte de uma reação química envolvendo as substâncias presentes nos terminais. As baterias modernas foram inventadas em 1799 pelo cientista italiano Alessandro Volta (1745-1827) que criou uma corrente entre discos de cobre e zinco separados por um tecido banhado em salmoura. No século XX, baterias passaram a ser produzidas em larga escala para aplicações como fonte de energia auxiliares de automóveis e dispositivos eletrônicos. No entanto, tais baterias eram caras e de baixa densidade energética (quantidade de energia armazenada por unidade de massa ou volume), sendo pouco utilizadas para aplicações estacionárias na rede elétrica ou como a principal fonte de energia para veículos elétricos.
Na década de 1970, baterias usando íons de lítio começaram a ser pesquisadas e mostraram potencial por terem alta densidade energética e se deteriorarem pouco após sucessivos ciclos de carga e descarga. Na década de 1990, baterias de íons de lítio passaram a ser amplamente utilizadas em eletrônicos. A tecnologia ganhou atenção e continuou a evoluir para atender aos mercados de laptops e celulares. Como atestado da sua relevância, em 2019, os cientistas Stanley Whittingham, John Goodenough e Akira Yoshino ganharam um prêmio Nobel pelo seu trabalho pioneiro em baterias de íon-lítio.
A evolução da tecnologia e a queda de custo das baterias de íon-lítio tornaram novos usos viáveis, especialmente a produção em massa de veículos elétricos a partir da década de 2010. Impulsionada pela gigantesca escala de produção de veículos elétricos, os custos de baterias de íon-lítio caíram de forma acentuada na última década, vivenciando uma curva de experiência semelhante à da energia solar fotovoltaica (ver O Futuro da Energia Solar). Estudo da Bloomberg New Energy Finance aponta por exemplo uma queda real de 82% no custo de baterias de íon-lítio nos dez anos entre 2013 e 2023.
Custos globais de baterias de íon-lítio entre 2013-2023
Fonte: Bloomberg New Energy Finance
Essa evolução da tecnologia combinada com o aumento da penetração de renováveis nas redes elétricas começa a viabilizar usos de baterias estacionárias. No período de 2009-2014 esse movimento começa de forma tímida e experimental na forma de projetos-piloto apoiados por subsídios. Entretanto, na segunda metade da década de 2010, o mercado cresce de forma exponencial e as baterias se tornam recursos fundamentais para o balanceamento da rede elétrica em alguns mercados, como o da Califórnia. O gráfico abaixo mostra a contribuição de cada fonte para o sistema elétrico da Califórnia em um dia de abril deste ano. Podemos ver claramente como as baterias (Storage no gráfico) se tornaram fundamentais para compensar a interrupção da geração solar no final da tarde.
Geração na rede da Califórnia (área de operação da CAISO) em 21 e 22 de abril de 2025
Fonte: https://blog.gridstatus.io/caiso-solar-storage-spring-2025/
Os Business Cases de Baterias
Mas como ativo de investimento, como as baterias estacionárias se viabilizam? Obviamente para além de projetos-piloto financiados com recursos de P&D, investidores vão buscar fontes de receita que viabilizem o investimento nestes sistemas. Estas podem ser garantidas por contratos de longo prazo ou dependentes da atuação diária em mercados dinâmicos. Vamos explorar as principais fontes de receita de baterias.
Contratos de Capacidade
Em muitas redes elétricas, alguns ativos são remunerados simplesmente por estarem disponíveis e poderem ser rapidamente acionados pelo operador quando há demanda. Esse papel tradicionalmente é desempenhado por usinas termelétricas, como é o caso do sistema elétrico brasileiro. Assim o ativo passa a contar com uma fonte de receita fixa, paga pela distribuidora de energia ou pelo operador do sistema, o que facilita a obtenção de financiamento, já que os credores passam a contar com uma fonte de geração de caixa estável para cobrir o serviço da dívida. Na Califórnia, por exemplo, foram os contratos de capacidade que viabilizaram grande parte da expansão das baterias estacionárias. No Brasil, leilões de capacidade especificamente voltados para baterias estão nos planos da ANEEL, mas o certame que estava planejado para esse ano foi adiado.
Na sua forma mais extrema, o projeto é operado pela contraparte do contrato, ou seja, o desenvolvedor é responsável apenas por manter a bateria disponível, mas não pela decisão e custos de carregar e descarregar as baterias. Esses contratos se assemelham assim a contratos de transmissão de energia no Brasil.
Arbitragem de Preços
Em muitos mercados de energia, os preços variam de forma dinâmica ao longo do tempo para refletir as condições de oferta e demanda de energia em um determinado momento. Isso representa uma oportunidade para baterias que podem ser carregadas em momentos de preço baixo e descarregadas em momentos de preços altos, capturando a margem da diferença de preço. Essa margem deve ser suficientemente grande para compensar as perdas do sistema (uma bateria perde entre 10 a 20% da energia ao ser carregada e descarregada) e os custos de investimento no sistema e sua manutenção. Assim, mercados com altas flutuações diárias de preço são os mais indicados para esse tipo de uso.
Esse é o caso por exemplo do mercado de energia do Texas: um mercado altamente dinâmico sem pisos ou tetos para o preço em que o equilíbrio entre oferta e demanda é definido pelo mercado, custe o que custar. Isso tornou o Estado atrativo para projetos de baterias que se beneficiam dessa volatilidade. Para reduzir parcialmente o risco do projeto e facilitar a obtenção de financiamento, surgiram instrumentos de hedge financeiro que garantem uma receita mínima ao operador da bateria.
Uma estratégia de arbitragem de preços também pode viabilizar baterias acopladas a usinas solares, permitindo que parte da energia do sistema solar seja armazenada na bateria ao longo do dia para ser comercializada no horário de pico (usualmente no início da noite), em que os preços são mais altos. Em alguns casos, baterias nos pontos de consumo como comércios ou residências (chamada, no jargão da indústria, de behind the meter) também exercem função semelhante, reduzindo o consumo de energia e potência demandada da rede em momentos em que preços são mais altos.
Prevenção de curtailment
Como vimos em artigos anteriores, sistemas com alta penetração de renováveis muitas vezes não conseguem absorver toda a energia gerada e forçam usinas solares / eólicas a reduzirem a sua geração, efetivamente desperdiçando parte da energia gerada. Com uma bateria localizada junto à geração, essa energia pode ser armazenada para ser utilizada em um momento oportuno. A China, por exemplo, se tornou o maior mercado para instalação de baterias no mundo em parte pela decisão do governo de obrigar projetos solares e eólicos a terem baterias integradas, de modo a reduzir o desafio do curtailment. Vale notar que essa decisão vai além da lógica de otimização do sistema elétrico sendo também parte da política industrial de tornar a China líder na indústria de baterias. Hoje o país produz 75% das baterias do mundo e abriga a líder incontestável da indústria (CATL).
Serviços Ancilares
Além do atendimento a demanda, ativos de geração são chamados a fornecer determinados serviços ao operador da rede elétrica, de modo a manter o equilíbrio fino entre geração e consumo e a qualidade da energia. Em muitos mercados, por exemplo, os geradores recebem uma receita adicional para regulação de frequência, ou seja, para ajustar rapidamente a geração para que a frequência do sistema não desvie do seu alvo (60 Hz no Brasil por exemplo), o que acontece quando geração e consumo não estão balanceados.
Baterias são conectadas a redes por sistemas de conversão de energia (PCS na sigla em inglês) que convertem a energia em corrente alternada na rede em corrente contínua para carregar as baterias e vice-versa para descarregar as baterias. Os PCS são ideais para executar serviços ancilares devido ao seu rápido tempo de reação (menos de um segundo após serem acionados). O mercado de regulação de frequência em especial tem sido importante para baterias, sendo a maior fonte de receitas no Reino Unido, por exemplo.
Combinação de Receitas
Frequentemente, uma bateria estacionária vai gerar receita por mais de uma das vias acima. Por exemplo, um projeto pode garantir uma receita fixa com um contrato de capacidade e gerar receitas adicionais por meio da arbitragem de preços, aumentando o seu retorno. A combinação de receitas precisa ser, no entanto, permitida pelo regulador.
Conclusão
Baterias certamente vieram para ficar no sistema elétrico. Elas são uma das principais soluções para os problemas criados pela intermitência de renováveis (que só tendem a crescer à medida que mais usinas solares e eólicas entram em operação) e estão surfando a onda da gigantesca indústria de veículos elétricos, que está em pleno crescimento. Em 2022, por exemplo, 550 GWh de baterias foram produzidas para a indústria de veículos elétricos, comparados a “apenas” 35 GWh para sistemas estacionários.
Contudo, o desenvolvimento de um mercado pujante de baterias estacionárias dificilmente acontece de forma espontânea: o papel do desenho de mercado e da regulação são fundamentais. Como ativos com características únicas (são consumo ou geração, dependendo do momento), baterias muitas vezes não se encaixam nas “caixinhas” existentes na regulação, sendo necessário uma adaptação das regras do jogo ou criação de mercados e contratos específicos para baterias. No Brasil, por exemplo, esse movimento ainda está para acontecer, como veremos no próximo artigo.
Muito interessante, não sabia da existência de baterias estacionárias.